quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Toda a vida



Tinha sempre o mesmo sonho: casinha de madeira no meio do mato e os bichos falavam. Era divertido e solitário. Uma solidão boa, de paz, de conviver consigo mesma; pensamentos, desejos, vontades, ações. Era descoberta de si mesma. Decidia e pronto: não importavam convenções, não havia ninguém para falar, discutir, discordar. Era ela. Sozinha.


Decidiu, certa vez, trocar o dia pela noite. Escurecia e ela saía, andando pelo mato, ouvindo o silêncio ao redor, bichos que a aconselhavam(por que ela nunca lhes dava atenção?!), o vento que a enchia (e preenchia) de idéias que vinham de longe, o próprio silêncio, o próprio vazio ou a própria confusão mental. Olhava as estrelas e desejava brilhar como elas, ter calor, luz própria. Via a escuridão e quanto aquele mato parecia ser profundo, fechado; e ela queria entrar nele, sentir-se ali dentro, como no coração de algo maior, muito maior que ela própria. Percebia o movimento no escuro, mas não via. Não havia lua, ou sua luz não penetrava na copa das árvores de mato fechado? Não importava. Assim era bom. Era bonito ver-se ali, imaginar o que acontecia na escuridão ao redor, ver o que acontecia na escuridão dentro de si.


Manhãzinha e via o sol despontar, raios preguiçosos e tímidos de quem acaba de acordar. Também amanhecia dentro dela, vez em quando. Começava luzinha fraca e crescia até chegar o meio-dia de sol brilhante e forte, de ofuscar os olhos e de aquecer o corpo, o coração. Tinha tanta vida ao redor, e que agora, sim, podia ver! Uma borboleta azul-brilhante pousava em seu ombro (E diziam que isso dava sorte...). Sentia-se plena, completa. Cheia de um sentimento inexplicável que lhe invadia e fazia bem.


Ela não se cansava, mas, no marasmo da tarde, adentrava a casinha e dormia. Era um sono bom. Algumas vezes tranqüilo, outras vezes agitado, mas bom. Ao anoitecer, acordava, com uma vontade danada de sair pra ver o mundo, e saía.


Tinha sempre o mesmo sonho. Toda noite. Todo dia. Toda a vida.

"De ontem em diante serei o que sou no instante agora
Onde ontem, hoje e amanhã são a mesma coisa
Sem a idéia ilusória de que o dia, a noite e a madrugada
São coisas distintas separadas pelo canto de um galo velho
(...)
Todo dia de manhã é nostalgia das besteiras que fizemos ontem"

(Fernando Anitelli))

Um comentário:

salamandra mágica disse...

O escuro dá medo! E a sombra e a solidão... Tá, a solidão é às vezes necessária, mas ruim em excesso. Prefiro segurar na mão de alguém!!! Se quiser segurar na minha ela tá estendida!

E essa história de borboleta, acho que funciona mesmo se vc acreditar!

^^